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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Nestlé ameaça uma cidade

Por Chico Villela*EmCrise, 29/5/03











Janeiro 2003, Suíça - A ATTAC, organização da sociedade civil que pleiteia a taxação de operações financeiras para aplicação na redução das desigualdades sociais no mundo, lidera manifestação contra a Nestlé, multinacional com sede na Suíça, contra a privatização de uma fonte na cidade de Bevaix. As leis suíças deram razão aos manifestantes: a água é considerada bem comum, inalienável e não comercializável. A água é patrimônio da humanidade, lá na Suíça.






Maio 2003, Brasil - O Movimento de Cidadania pelas Águas, organização espontânea da sociedade civil da cidade sul-mineira de São Lourenço, que pleiteia, entre outras coisas, o controle público sobre os seus recursos hídricos minerais, lidera manifestação contra a Empresa de Águas de São Lourenço, pertencente à multinacional suíça Nestlé, pelo fim da superexploração das águas minerais que garantem o turismo e a economia da cidade.
Em um poema, o falecido poeta turco Nazim Hikmet afirma que os subterrâneos dos bancos suíços não estocam dinheiro: acumulam sangue de povos, combatentes e heróis que se opuseram e se opõem a tiranias diversas, cujos titulares os assassinaram e assassinam para, na maioria dos casos, vender com mais sossego o seu país e correr para depositar seus lucros nos bancos suíços, de preferência. Sem citar os dinheiros lavados que viajam todo dia para o paraíso suíço.
Na Suíça, a água é bem comum. Em São Lourenço, cidade da ex-colônia Brasil, situada na ex-província de Minas, fornecedora do ouro que, junto com a prata andina, constituiu uma das bases da Revolução Industrial européia, a água é da multinacional Nestlé. O ouro acabou, mas as minas continuam generosas. A julgar pela voracidade da Nestlé, em breve terão o destino do ouro: a extinção.
Mas a Nestlé já extinguiu coisas mais importantes. Fazem parte dos clássicos da pediatria os esforços da empresa em apresentar seu leite de vaca em pó como alternativa melhorada para o leite materno. Ao introduzir o seu leite Ninho na África, por exemplo, as imagens que o recomendavam eram de moças vestidas como enfermeiras, e o leite era associado à idéia de medicamento, com largas vantagens sobre o leite materno. O consumo desse produto, diluído em razão do alto custo, nem sempre manipulado com higiene e água pura, transformou-se num vetor para a morte de bebês, privados da imunização que o então desvalorizado leite da mãe proporciona.
"Estratégia publicitária", afirmavam "profissionais". Ativistas suíços entenderam diferente e publicaram o texto "A Nestlé mata bebês" (The baby killer, de Mike Muller). Em reação, a empresa os processou, mas o resultado foi um julgamento dos procedimentos da Nestlé. Especialistas e cientistas em todo o mundo, em vigorosas manifestações, revitalizaram a campanha do aleitamento materno, hoje recomendação universal encampada por agências de saúde como a OMS, da ONU.
Lula tem tanta vontade de que o Fome Zero dê certo que aceitou milhões de latas de leite em pó da Nestlé, levantadas em milionária campanha de marketing com Faustões & Gugus no apoio. Mas o governo esqueceu-se de (ou ainda não percebeu) que a revitalização da economia que elimina a fome passa pela valorização dos pequenos produtores, inclusive os de leite, que as multinacionais como a Nestlé adquirem cada vez mais a preços cada vez menores, como acontece há tempos no Sul de Minas e como está ocorrendo agora em Goiás, por exemplo. Isso quando não abandonam empreendimentos "pouco rentáveis" e deixam os prejuízos sociais para governos municipais que facilitaram sua vida, como o testemunha o fechamento da unidade fabril de Três Corações.
Metas mundiais
A atuação da Nestlé em São Lourenço faz tudo isso parecer brinquedo de criança. Em 1992, a Nestlé adquiriu o controle mundial da Perrier Vittel, até então dona do Parque das Águas e concessionária da exploração das suas águas minerais. Essa compra inscreveu-se na estratégia da empresa de tornar-se a maior engarrafadora de água de beber em todo o mundo, meta já atingida hoje, com 73 marcas em muitos países. No Brasil, a ofensiva está em andamento: a Nestlé disputa o segundo lugar com a Superágua, concessionária em Lambari, Caxambu, Cambuquira e Araxá. A aquisição da Perrier deu à Nestlé a propriedade do Parque das Águas e o direito de exploração das águas minerais existentes, resguardados os direitos da população e dos turistas de beneficiarem-se com as virtudes medicinais seculares dessas águas.
A partir daí, a empresa entendeu que a estratégia mundial relativa à água de beber deveria aplicar-se, no caso de São Lourenço, sobrepondo-se a conquista das suas metas no Brasil (investimentos de 50 milhões de dólares, construção de 7 novas fábricas, ênfase total no novo segmento de "águas adicionadas de sais") aos interesses da população da cidade. Os recursos oferecidos pelo Parque das Águas eram modestos: pequenas vazões, unidade industrial restrita, limitações de ordem legal à expansão das captações.
Mistérios das águas
Aqüífero significa depósito subterrâneo de água, às vezes acumulada durante muito tempo, caso do Aqüífero Guarani, o maior do mundo, formado há cerca de 220/140 milhões de anos, que jaz sob doze estados brasileiros além de partes de Uruguai, Paraguai e Argentina, e que aloja água suficiente para abastecer todo o Brasil por 2 mil anos sem renovação. Há aqüíferos fósseis e renováveis. Os fósseis são fechados como os de petróleo: tira-se a água e nada mais resta. Os renováveis são dinâmicos: sai água, e entra água de chuva, filtrada lentamente pelo solo e as rochas. A existência de vários tipos de águas em espaços restritos como o do Parque das Águas pressupõe um sistema delicadíssimo de composições rochosas e aqüíferos dentro de nichos poliminerais diversos. A água flui, em fios suficientes para o consumo, e se renova por processos ainda não bem decifrados pela ciência. Foi neste cenário cercado de imponderabilidades que a Nestlé plantou sua política predatória.
Luz sobre a Nestlé
O Movimento de Cidadania pelas Águas identificou uma série exemplar de procedimentos ilegais da Nestlé, alguns dos quais já são objeto de ação civil pública proposta pelo curador de Meio Ambiente e promotor de São Lourenço, dr. Pedro Paulo Aina, que enxerga danos ao ambiente e ao patrimônio turístico. Geólogos da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, consultores e especialistas auxiliaram a construir um painel estarrecedor de irregularidades, desrespeito aos cidadãos e violações flagrantes de dispositivos legais. Entre as principais acusações já consolidadas contra a Nestlé, anotam-se:






1) Destruição da Fonte Oriente A Nestlé demoliu a Fonte Oriente, a mais antiga da história da cidade, erguida em 1892, para ampliar a unidade fabril alojada no interior do Parque. Talvez para compensar, uma das três águas comercializadas e exportadas chama-se Oriente.



2) Secamento de fonte A fonte da água magnesiana, a mais procurada e consumida, secou há três anos, depois de mais de cem anos de regularidade. Seu fim coincide com a superexploração do Poço Primavera, de onde a Nestlé obtém a matéria-prima da água Pure Life, carro-chefe internacional da conquista do primeiro lugar mundial entre os fabricantes de "águas com sais adicionados". Técnicos da Nestlé afirmaram em audiência pública que "não há no momento tecnologia para recuperá-la". Para secá-la, parece que houve. A da Fonte Vichy, só ocorrente, no planeta, no Parque e na cidade francesa de Vichy, vai pelo mesmo caminho: é a próxima a secar, a julgar pela drástica redução do seu volume de afloramento.
3) Expansão da fábrica A unidade fabril foi expandida em 300%, e a obra foi feita sem a passagem completa pelos procedimentos administrativos públicos e sem licenciamento ambiental. Isso permitiu à Nestlé, por exemplo, cortar árvores antigas do Parque, sem qualquer consulta aos órgãos ambientais responsáveis. O memorial descritivo da obra previa a construção de fossa séptica, cujo conteúdo seria dispersado num ambiente de formação de águas potáveis.



4) Redução da área de lazer A expansão da fábrica eliminou tradicionais áreas de lazer do Parque: os campos de bocha, o campo de futebol, o parque infantil, até agora não repostos.



5) Construção de muralha Uma muralha de mais de quatro metros de altura foi construída, também sem licenciamento, em volta da nova fábrica, com estacas de concreto que avançam até


7 metros no solo. A obra compromete os lençóis freáticos superficiais que desempenham papel vital na caminhada das águas até os aqüíferos mais profundos.



6) Perfuração de poço Um poço de grande vazão, de 158 metros, foi perfurado, sem autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão do Ministério das Minas e Emergia (MME), e deixado mais de um ano jorrando sem uso. A água, absolutamente especial, foi considerada "a mais mineralizada até agora descoberta no país", mas seu altíssimo teor de ferro tornava-a imprópria para embalagem e consumo. A eliminação do excesso de ferro não encontra abrigo na legislação brasileira.




7) Desmineralização de água Essa água mineral com elevado teor de ferro passou a ser usada, ilegalmente, pela Nestlé, após a retirada de todos os elementos e compostos minerais, para a produção da água Pure Life, que é do gênero "água comum adicionada de sais". As leis brasileiras proíbem o uso de águas minerais para a fabricação desse gênero de água. Em geral, águas como a Pure Life são produzidas com a chamada água de torneira, ou mesmo a água retirada de rios, que, depois de "purificada", recebe alguns sais fabricados industrialmente. O procedimento da empresa, além de desrespeitar leis, incorre em crime ambiental por destruir, sem amparo legal, água mineral que ela mesma reconhece como "altamente mineralizada". A empresa não explicou até agora o destino que dá aos minerais e substâncias retirados.



8) Fechamento do balneário O balneário alojado no Parque tem sido fechado em razão de falta de água e de médicos que orientem os usuários.



9) Redução da pressão das fontes As fontes do Parque vêm apresentando redução de pressão e de volume de saída da água.



10) Alteração do sabor As águas têm sido consideradas diferentes das antigas, por usuários que há tempos delas fazem uso. Têm sido constatadas notáveis alterações na salinidade e no sabor, o que sugere alterações na composição química. Os depoimentos citam insistentemente "perda de sabor" e "pouca diferença entre as águas".



11) Afundamentos do solo Em alguns pontos do Parque têm sido registrados afundamentos do solo.



12) Trincas em construções Colunas e algumas paredes de fontes e construções têm apresentado trincas.



Os itens de 9 a 12 acham-se, conforme as análises técnicas indicam, unidos por um fator comum: a redução da capacidade dos aqüíferos. À medida que grandes volumes de água são retirados de um ecossistema desconhecido e delicado como o do subsolo do Parque, a ocorrência desses fenômenos parece indicar fatos como a redução dos elementos de sustentação do solo e a incapacidade de recomposição da composição química usual da águas.
O futuro das águas
São Lourenço é o quarto menor município do país. Com apenas 51 km2, não possui zona rural. Sua economia está, desde as origens, associada e intimamente vinculada às águas medicinais do Parque. Dores, reumatismos, hipertensão, arteriosclerose, distúrbios de estômago e intestinos e outros males têm encontrado cura com o uso de suas águas e de banhos de lama, duchas e saunas. Suas águas gasosas, magnesianas (?), alcalinas, sulfurosas, ferruginosas e outras são características de raras regiões anteriormente vulcânicas, caso também de Poços de Caldas. Seu clima é ideal para curas de males associados ao sistema respiratório. Em resumo: cidade e águas são um conjunto solidário, um não existe sem o outro.
A Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA) instituiu em 1982 um rol anual, a Lista Suja de empresas que concorrem para a degradação ambiental. No ano passado, entre seis premiados na Lista Suja, a Nestlé ficou em honroso quinto lugar. Para a AMDA, a Nestlé mereceu a distinção, além das razões apontadas, por "enriquecimento ilícito, violação do subsolo, atropelamento da nossa cultura, desobediência às leis ambientais, desprezo por nossa história, ameaça à ordem econômica de toda uma cidade".
Adelino Gregório Souza, quando era chefe do Setor de Águas Subterrâneas do DNPM/MME, recomendou a interdição da exploração e do engarrafamento de águas pela Nestlé até que se verificasse a situação legal do cipoal de contravenções em que a empresa vinha e vem incorrendo. Uma semana depois de assinar seu laudo, foi exonerado sem explicações. Hoje, é chefe da Secretaria de Recursos Hídricos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em longo telefonema ao jornalista Hélio José Marques, nascido na cidade, declarou: "As águas de vocês aí, em São Lourenço, não devem durar muito. Talvez cinco ou seis anos mais".
O prefeito da cidade, apelidado Nega Véia, contrariou decisão de associação dos municípios do Circuito da Águas, da qual São Lourenço faz parte, e foi o primeiro de uma estância a autorizar a produção da água Pure Life. Também tem autorizado a expansão da fábrica às custas do Parque e da sobrevivência das águas. Parte do Legislativo o apóia.
Esgotadas as águas, a Nestlé vai abandonar a cidade então sem futuro e procurar outros lugares para fabricar lucros. À sua espera, com certeza, estará outra cidade a ser infelicitada. E outro prefeito com o mesmo perfil.





A Nestlé se posicionaEm resposta a uma solicitação da revista Novae, a Nestlé dá a sua versão do caso
"A Nestlé atua em São Lourenço continuamente e abertamente junto aos órgãos regulatórios e fiscalizadores - o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM). As fontes da Empresa de Águas São Lourenço são freqüentemente vistoriadas pelos técnicos do DNPM e da FEAM. Todos os pareceres emitidos até o momento afirmam que a Nestlé opera de maneira consistente com os regulamentos do setor, ou seja, não existe o menor indício de superexploração dos aqüíferos em São Lourenço.
A legalidade da exploração das águas em São Lourenço advém do Manifesto de Mina n° 140/35. A extensão dos direitos a que se refere o manifesto corresponde à área da propriedade, conforme atestado pelo DNPM no parecer datado de 24/05/1985. A licença ambiental de operação da atividade minerária está regularizada na FEAM conforme processo COPAM 058/1998/001/1998. Para recebimento da licença, a empresa atendeu todas as exigências da legislação ambiental.
A Nestlé está certa de que atua absolutamente dentro da legislação. Isso já está devidamente comprovado por meio da apresentação de todos os documentos pertinentes."
Marcelo MarquesGerente IndustrialEmpresa de Águas São LourençoGrupo Nestlé

Leia maisThe baby killer, de Mike Muller, e as respostas da Nestlé (.pdf)
*Chico Villela é escritor e editor, colaborador do EmCrise. A reportagem foi publicada originalmente no jornal "O Sul de Minas".

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